Porque fazemos tanta questão de ser chamados de Doutores quando, no máximo, a maioria de nós só chega a Mestres ou Especialistas, muitos nem aí chegaram, mal terminaram o curso superior em Direito ou Medicina e já fazem a absoluta questão do título.
Em alguns países, eu diria – “mais civilizados” (só pode), o título em questão somente é direcionado a quem de direito, ou seja, aos verdadeiros Doutores, Pós-Doutores e PHDs.
Para começo de conversa Doutor não é uma forma de tratamento. O Manual de Redação e Estilo da Presidência da República Brasileira atualmente diz o seguinte:
"Acrescente-se que doutor não é forma de tratamento, e sim título acadêmico. Evite usá-lo indiscriminadamente. Como regra geral, empregue-o apenas em comunicações dirigidas a pessoas que tenham tal grau por terem concluído curso universitário de doutorado ou Doutoramento, este último é a forma utilizada em Portugal”.
Aqui no Brasil, autodeclarar-se Doutor, na Área Jurídica ou Médica, é quase uma regra. Basta darmos uma olhada na maioria dos sites de escritório de Advocacia, nas divulgações existentes nas portas dos escritórios e nos consultórios médicos.
Alguns dirão que é o costume, que vem desde a época de Dona Maria Pia (Maria “a Louca”) de Portugal, que determinou que bacharéis em Direito, no País Luso, deveriam ser chamados de Doutores; “logo mais”, D. Pedro I, ao implantar cursos Jurídicos no Brasil teria dado aos Advogados, por meio de um decreto-lei, o mesmo direito, ou seja, ser chamados de Doutores por curtíssimo período.
O artigo 9º dessa lei, que é de 11 de Agosto de 1827, diz o seguinte:
"Os que frequentarem os cinco anos de qualquer dos cursos, com aprovação, conseguirão o grau de bacharéis formados. Haverá também o grau de Doutor, que será conferido àqueles que se habilitarem com os requisitos que se especificarem nos Estatutos que devem formar-se, e só os que o obtiverem poderão ser escolhidos para Lentes". Essa lei afirmava apenas que aqueles que completassem os cinco anos do curso de direito seriam bacharéis. E, para a obtenção do grau de Doutor, seria necessário o cumprimento do estabelecido nos estatutos das Instituições de Ensino do Curso de Direito quando se candidatassem a lentes (" professores ", do latim legente). Antes, a livre-docência era acessível a qualquer professor de uma instituição. Uma legislação de 11 de setembro de 1976 determinou alterações na livre-docência, só podendo, então, se candidatar a professor aquele que já fosse portador do título de doutor. Observe-se, portanto, que vasta legislação posterior ao Decreto Imperial alterou significativamente a forma de obtenção do título.
Como podem perceber, no parágrafo anterior, até na época de D. Pedro I, para ser Doutor teria que haver um “algo mais”, mesmo não sendo um Doutoramento, como é hoje, já não seriam mais “Doutores”, os simples bacharéis.
No entanto há o tal do costume; o uso costumeiro de tratar-se, por doutor, pessoas de algumas formações superiores, principalmente Medicina e Direito, e mesmo excepcionalmente até alguns sem formação (veja o caso dos políticos e proprietários ou diretores de Empresas). Como já mencionamos anteriormente, o uso oficial contido no Manual de Redação e Estilo da Presidência da República Brasileira recomenda que, como regra geral, empregue-se tal título aos acadêmicos que finalizaram o grau de doutorado: nos demais casos," senhor "é suficiente, segundo o Manual.
Em um excelente artigo para a Revista época (Set. 2012), a Jornalista, Escritora e Documentarista premiada, Eliane Brum, diz o seguinte:
“Travo minha pequena batalha com a consciência de que a língua nada tem de inocente. Se usamos as palavras para embates profundos no campo das ideias, é também na própria escolha delas, no corpo das palavras em si, que se expressam relações de poder, de abuso e de submissão. Cada vocábulo de um idioma carrega uma teia de sentidos que vai se alterando ao longo da História, alterando-se no próprio fazer-se do homem na História. E, no meu modo de ver o mundo, “doutor” é uma praga persistente que fala muito sobre o Brasil. Como toda palavra, algumas mais do que outras, “doutor” desvela muito do que somos – e é preciso estranhá-lo para conseguirmos escutar o que diz.
Assim, minha recusa ao “doutor” é um ato político. Um ato de resistência cotidiana, exercido de forma solitária na esperança de que um dia os bons dicionários digam algo assim, ao final das várias acepções do verbete “doutor”: “arcaísmo: no passado, era usado pelos mais pobres para tratar os mais ricos e também para marcar a superioridade de médicos e advogados, mas, com a queda da desigualdade socioeconômica e a ampliação dos direitos do cidadão, essa acepção caiu em desuso”.
Sinceramente eu também gostaria de chegar a ver a expressão dicionarizada como arcaica e em desuso. Infelizmente será difícil porque somos muito apegados a ela, de uma forma que até poderemos ampliar seu uso e não o contrário.
Seguindo com o discurso da referida Jornalista transcreveremos mais alguns parágrafos do artigo que supomos importante e até crítico:
“Historicamente, o “doutor” se entranhou na sociedade brasileira como uma forma detratar os superiores na hierarquia socioeconômica – e também como expressão de racismo. Ou como a forma de os mais pobres tratarem os mais ricos, de os que não puderam estudar tratarem os que puderam, dos que nunca tiveram privilégios tratarem aqueles que sempre os tiveram. O “doutor” não se estabeleceu na língua portuguesa como uma palavra inocente, mas como um fosso, ao expressar no idioma uma diferença vivida na concretude do cotidiano que deveria ter nos envergonhado desde sempre.
Lembro-me de, em 1999, entrevistar Adail José da Silva, um carregador de malas do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, para a coluna semanal de reportagem que eu mantinha aos sábados no jornal Zero Hora, intitulada “A Vida Que Ninguém Vê”.Um trecho de nosso diálogo foi este:
- E como os fregueses o chamam? - Os doutor me chamam assim, ó: “Ô, negão!” Eu acho até que é carinhoso.
- O senhor chama eles de doutor? - Pra mim todo mundo é doutor. Pisou no aeroporto é doutor. É ó, doutor, como vai, doutor, é pra já, doutor...
- É esse o segredo do serviço? - Tem que ter humildade. Não adianta ser arrogante. Porque, se eu fosse um cara importante, não ia tá carregando a mala dos outros, né? Sou pé de chinelo. Então, tenho que me botar no meu lugar.
A forma como Adail via o mundo e o seu lugar no mundo – a partir da forma como os outros viam tanto ele quanto seu lugar no mundo – contam-nos séculos de História do Brasil. Penso, porém, que temos avançado nas últimas décadas – e especialmente nessa última. O “doutor” usado pelo porteiro para tratar o condômino, pela empregada doméstica para tratar o patrão, pelo engraxate para tratar o cliente, pelo negro para tratar o branco não desapareceu – mas pelo menos está arrefecendo.
Se alguém, especialmente nas grandes cidades, chamar hoje o outro de “doutor”, é legítimo desconfiar de que o interlocutor está brincando ou ironizando, porque parte das pessoas já tem noção da camada de ridículo que a forma de tratamento adquiriu ao longo dos anos. Essa mudança, é importante assinalar, reflete também a mudança de um país no qual o presidente mais popular da história recente é chamado pelo nome/apelido. Essa contribuição – mais sutil, mais subjetiva, mais simbólica – que se dá explicitamente pelo nome, contida na eleição de Lula, ainda merece um olhar mais atento, independentemente das críticas que se possa fazer ao ex-presidente e seu legado.
Se o “doutor” genérico, usado para tratar os mais ricos, está perdendo seu prazo de validade, o “doutor” que anuncia médicos e advogados parece se manter tão vigoroso e atual quanto sempre. Por quê? Com tantas mudanças na sociedade brasileira, refletidas também no cinema e na literatura, não era de se esperar um declínio também deste doutor?
Infelizmente, a maioria dos “doutores” médicos e dos “doutores” advogados, juízes, promotores, delegados etc estimulam e até exigem o título no dia a dia. E talvez o exemplo público mais contundente seja o do juiz de Niterói (RJ) que, em 2004, entrou na Justiça para exigir que os empregados do condomínio onde vivia o chamassem de “doutor”. Como consta nos autos, diante da sua exigência, o zelador retrucava: “Fala sério...” Não conheço em profundidade os fatos que motivaram as desavenças no condomínio – mas é muito significativo que, como solução, o juiz tenha buscado a Justiça para exigir um tratamento que começava a lhe faltar no território da vida cotidiana.
É importante reconhecer que há uma pequena parcela de médicos e advogados, juízes, promotores, delegados etc que tem se esforçado para eliminar essa distorção. Estes tratam de avisar logo que devem ser chamados pelo nome. Ou por senhor ou senhora, caso o interlocutor prefira a formalidade – ou o contexto a exija. Sabem que essa mudança tem grande força simbólica na luta por um país mais igualitário e pela ampliação da cidadania e dos direitos. A estes, meu respeito. - (o meu também).
(…)
“Estou bem longe de esgotar o assunto aqui nesta coluna” (Diz Eliane Brum). Faço apenas uma provocação para que, pelo menos, comecemos a estranhar o que parece soar tão natural, eterno e imutável – mas é resultado do processo histórico e de nossa atuação nele. Estranhar é o verbo que precede o gesto de mudança. Infelizmente, suspeito de que “doutor fulano” e “doutor beltrano” terão ainda uma longa vida entre nós. Quando partirem desta para o nunca mais, será demasiado tarde. Porque já é demasiado tarde – sempre foi.
Autoria/Comentários/Pesquisa: Elane F. De Souza OAB-CE 27.340-B
Foto/Créditos: Prosaepolitica. Wordpress. Com
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Faça um comentário ou envie uma pergunta