Viajar é uma das melhores coisas que conheço! Quando passo muito tempo sem conhecer algo distinto do cotidiano já me sinto estressada, sem muito entusiasmo para produzir.
Essa convesa, para alguns, pode até parecer coisa de gente que só curte a vida e foge do trabalho, mas não; a verdade é que, com elas, sempre surgem ideias e sentimentos que gosto de compartilhar, além do mais me sinto revigorada na volta, pronta para novos desafios.
Essa última que fiz foi pelo sertão nordestino. Havia muito tempo que planejava conhecer o lado da família que vive no interior da Bahia, na caatinga, no Irecê, Gentil do Ouro e por toda a região circundante.
Fiquei impressionada com a quantidade de gente que vive por ali, e são, de alguma forma, meus aparentados. Pequenas cidades e povoados inteiros tomados por familiares. Até escolas e postos de saúde levam o nome dos mais antigos, dos já falecidos.
No entanto não vim aqui falar de mim e dos meus, todavia aproveitei essa prosa para dar entrada num assunto que a mim me parece importante, qual seja: “polígono da maconha e o novo cangaço”.
Foi durante o retorno que me dei conta que podia discorrer um pouco acerca desse assunto que há muito me incomodava.
Acredtio que a maioria dos leitores já sabem que o Polígono da Maconha é uma região do nordeste brasileiro, em especial, do Pernambuco, no entanto Bahia se faz presente. São 13 cidades (Salgueiro, Floresta, Belém de São Francisco, Cabrobó, Orocó, Santa Maria da Boa Vista, Petrolina, Carnaubeira da Penha e Betânia); na Bahia, (Juazeiro, Curaçá, Glória e Paulo Afonso).
O percurso que fiz pelo nordeste, de carro, até chegar ao meu destino foi passando por Paulo Afonso, com àquele certo “medo” que afeta a maioria do sexo feminino e até alguns do sexo masculino, no entanto o mais perigoso foi o da volta para casa; tudo isso no afã de conhecer algo mais – cidades diferentes e estradas melhores.
Quando já estava quase na metade do caminho é que me lembrei disso – estaríamos a percorrer o lado mais famoso e violento do “polígono da maconha”, além da rota do “novo cangaço”.
Felizmente passamos por estradas bem melhores, renovadas e aparentemente seguras. Pelo menos foi o que me pareceu. Decidi, durante esse caminho, tornar-me uma espécie de Jornalista e seguir buscando informações sobre tudo.
Descobri que as estradas já não eram as mesmas, estavam boas, sem buracos; que os “novos cangaceiros” não estavam mais agindo depois da morte de um de seus líderes pela polícia local; que quando agiam era durante à noite entre Cabrobó, Belém de São Francisco e Floresta no Pernambuco; no entanto se quiséssemos não correr riscos desnecessários o melhor mesmo seria dirigir durante o dia. Foi o que fizemos!
O novo cangaço, literalmente, “tocava o terror” nessa região e em outras próximas e até distantes. Assaltos com violência e até mortes se deram no nordeste; até o Centro Oeste (MT) sofreu com ataques desses novos cangaceiros.
Mas, retornando ao assunto Polígono da Maconha, citarei uma entrevista realizada pelo siteCarta Capital, em julho de 2015, por Marcelo Pellegrini, entrevistadando o pesquisador Sociólogo Paulo César Fraga da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
CartaCapital: A maconha cultivada no Polígono da Maconha é responsável pelo abastecimento de qual fatia do mercado nacional?
Paulo Fraga: Há um mito de que a maconha consumida no Brasil venha do Paraguai, de que não é um problema nosso. No entanto, estima-se que a maconha do Vale do São Francisco abasteça cerca de 40% do mercado nacional, ficando restrita às capitais, às regiões metropolitanas e ao interior do Nordeste. A maior parte da maconha consumida no Brasil vem do Paraguai e abastece os principais mercados como Rio, São Paulo, Porto Alegre, Curitiba, Belo Horizonte e as regiões metropolitanas e as cidades de médio e pequeno porte dos estados do Sul e Sudeste. O Brasil é considerado o quinto maior produtor de maconha das Américas, mas sua produção não consegue abastecer todo o mercado nacional. Somos grandes consumidores.
CC: É possível estimar os valores envolvidos nesta cadeia produtiva?
PF: Não arriscaria valores, pois não há fontes ou projeções muito seguras. O que se pode dizer é que houve época em que os recursos do plantio tinham muito impacto nas cidades locais. Isso mudou e hoje o impacto é menor. Apesar de não se ter uma política agrária consistente para a região, os programas sociais e ações de desenvolvimento nos últimos anos tiveram impactos mais relevantes.
A crise que se avizinha pode significar um quadro como o que víamos o final do anos 1990, em que a pobreza extrema era muito presente na região, a violência era alarmante e a migração da violência do tráfico migrava para outras criminalidades mais facilmente. No final dos anos 1990, das 10 cidades com maior taxa de homicídios no país, três ficavam na região do Polígono da Maconha.
CC: O que explica o plantio de maconha na região do Nordeste denominada Polígono da Maconha?
PF: A presença da maconha na região vem de longa data, mas o cultivo se intensifica com o surgimento de um mercado no País. Esse surgimento estava atrelado à contracultura nos anos 1970 e teve produção recorde a partir da década de 90. No entanto, a explicação para o plantio de maconha na região do Vale do São Francisco não está apenas relacionada a um fator histórico ou de um mercado consumidor.
O deslocamento de agricultores para a construção de hidrelétricas no rio e o crescimento do agronegócio também têm uma parcela significativa na explicação deste fenômeno. O agronegócio, ao mesmo tempo que criou rotas de escoamento, não foi uma alternativa viável de emprego para os trabalhadores rurais. Se somarmos a isso as péssimas condições para o desenvolvimento dos produtos agrícolas tradicionais, em uma região de seca e de baixíssimo investimento governamental, temos os elementos propícios para o crescimento dos plantios ilícitos de cannabis.
CC: O senhor disse que, além dos elementos econômicos e sociais, historicamente o cultivo de maconha sempre esteve presente nesta região. É isso mesmo?
PF: Há registros da presença de cannabis na região desde a segunda metade do Século XIX. O inglês Richard Burton, navegando pelo Rio São Francisco, identificou a planta e chamou a atenção para o fato de o clima e da vegetação serem propícios ao desenvolvimento de seu cultivo para ser usado comercialmente, na indústria têxtil.
Já nos anos 1930, Jarbas Pernambucano, estudioso de questões sociais envolvendo o uso da maconha, revela a presença de plantios para fins de abastecimento dos incipientes mercados de Salvador e Recife. Nos anos 1950, em seu livro O Homem do Vale do São Francisco, Donald Pierson descreve situações de uso coletivo da maconha e de plantio em, pelo menos, cinco localidades. Nesta mesma época, já há preocupação das autoridades brasileiras com a repressão do plantio nessa região.
CC: A repressão ao plantio de maconha ocorre desde os anos 80. Por que ela não foi capaz de acabar com essa prática?
PF: Não adianta reprimir sem dar maiores alternativas ao plantio ilícito. É preciso ações como um maior financiamento do pequeno produtor, apoio ao escoamento da produção, integrar as áreas produtivas com os mercados consumidores, amenizar o convívio com a seca e mudar a nossa política de repressão às drogas. Estamos no século XXI e não podemos mais utilizar a desculpa de que a seca é um flagelo. Nessa mesma região, o agronegócio prospera. O problema, com certeza, não é a falta de água.
CC: Há interesse de grupos familiares ou de políticos regionais em manter essa atividade, que é altamente lucrativa?
PF: Enquanto houver esses problemas de infraestrutura para a agricultura local, haverá o plantio de cannabis. Mas é lamentável que o Brasil não reveja suas leis sobre a produção de cannabis e essa região não possa se transformar em um polo legal para fins medicinais do uso de cannabis, por exemplo, ou de produção têxtil e, mesmo, para fins recreativos. Sei que a questão não é simples, mas precisamos enfrentá-la.
Em um possível cenário em que a maconha seja liberada, esta região poderia ser aquela que teria o monopólio da produção, notadamente, no sistema de agricultura familiar. A maconha, então, traria melhores condições de vida para o sertanejo. Porque vamos ainda colocar trabalhadores rurais na cadeia ou na vida do crime? Quem ganha com isso? Com certeza, não é o pequeno agricultor. Quem mais se beneficia não é o pequeno agricultor, mas o atravessador e o "patrão", como na agricultura tradicional.
CC: Qual é o perfil do trabalhador envolvido neste plantio?
PF: O trabalhador envolvido no plantio da cannabis não se diferencia do agricultor tradicional. São agricultores pobres, que não têm muitas condições de uma vida mais digna de consumo e bem estar fora do plantio ilícito. Muitos deles em uma época do ano plantam o produto tradicional como o algodão, o pimentão, o tomate e, em outra parte do ano, se envolvem no plantio de cannabis. Ou seja, utilizam o plantio de cannabis como forma de complementar sua renda. Outros se dedicam mais intensificadamente e estão mais atrelados à rede criminosa. Mas é importante frisar que a grande maioria dos agricultores locais não têm qualquer relação com o plantio de cannabis.
CC: O plantio envolve a família toda?
PF: Nos anos 1990 era mais comum ver jovens, adolescente e até criança no plantio. Os programas governamentais implementados nas últimas décadas tiveram um impacto positivo de expor menos esse público às condições de trabalho, na maioria das vezes, penosas. Hoje, quando se utiliza força de trabalho infanto-juvenil é mais na hora da colheita, pois ela precisa ser rápida para evitar roubos de outros grupos ou não ser apanhados pela polícia, que prefere agir na repressão no momento da colheita para aumentar o prejuízo. Muitos jovens, filhos e netos de agricultores atingidos pelas barragens do Rio São Francisco tiveram sua primeira experiência agrícola no plantio de cannabis.
CC:É um plantio organizado em grandes propriedades ou em agricultura familiar?
PF: Não há latifúndio ou plantios em áreas muito extensas porque isso facilitaria bem mais as tarefas de identificação das polícias, principalmente a Polícia Federal, que hoje já faz um trabalho mais eficiente de identificação de plantios por imagem de satélites. Ademais, plantios muito extensos são de mais difícil organização, planejamento e controle.
CC: Então, como os trabalhadores se envolvem neste plantio?
PF: Os trabalhadores se envolvem, geralmente, de três formas. A primeira é como assalariado. Sendo contratado por um período, para plantar, cuidar e colher. Pode ser, também, no sistema de meeiro, quando cuida de uma porção de terra e depois divide o produto com quem chamam de "patrão", uma pessoa que geralmente nem conhecem. A terceira forma é como agricultura familiar. Em qualquer um dos três modos, o pequeno agricultor envolvido não tem controle do preço final do produto e se insere de maneira subalterna, em um elo de produção e venda em que há mais atores. O agricultor é o elo mais frágil da cadeia e é quem mais sofre com a repressão porque está na ponta do processo e mais desprotegido.
CC: Em quais terras ocorre a produção de maconha?
PF: Devido ao fato da legislação brasileira prever terras para desapropriação para fins de reforma agrária em áreas onde forem encontrados plantios ilícitos, as plantações se fazem, geralmente. Em terras abandonadas, de propretário desconhecido ou em áreas públicas, inclusive de preservação, como a caatinga. No entanto, com a intensificação das ações de erradicação dos plantios nos últimos anos, volta-se a utlizar plantios em pequenas proriedades, em quantidades de covas reduzidas, para evitar a identificação, e nas ilhas do Rio São Francisco.
CC: O plantio acontece o ano todo?
PF: Sim, é possível plantar o ano todo, pois não há muita variação e a cannabis é uma planta bem adaptada. O que se busca é variar o período para se evitar as ações de erradicação de plantio.
CC: Existe relação entre o uso de agrotóxicos nessas plantações e uma maior frequência das incursões da polícia nesta região?
PF: Agrotóxico, no sentido do defensor agrícola para evitar pragas, não. Mas, em relação a uso de produtos para acelerar a produção, sim. Historicamente o plantio de cannabis na região era feito sem a utilização de adubos químicos para evitar o aumento do preço de custo da produção. No entanto, o aumento da eficiência das ações de erradicação das polícias, prevendo ações em períodos de colheitas de quatro meses, levou à utilização de adubos químicos para acelerar o tempo da colheita. Hoje é possível ter ciclos de dois meses.
Apesar de termos citado as 13 cidades mais “importantes” no plantio da ervacannabis sativa, há outras que não são tão conhecidas assim.
Em conversas extra oficiais com “membros do meu clã”, em Gentil do Ouro, soube que há indivíduos presos, que possivelmente serão condenados exatamente pelo plantio da droga. Ao contrário do que muitos pensam, não é somente a falta de incentivo governamental ou falta absoluta de recursos que levam agricultores do nordeste a envolver-se nesse tipo de atividade criminosa; na região de que falo, o fator preponderante foi a ganância, a esperança de lucro fácil e maior, uma vez que ela (a erva) se produz em qualquer solo e é bastante rentável.
O problema de tudo é que, após o envolvimento com organizações criminosas, esses pequenos proprietários, que cedem terra e a mão de obra não tem mais como “fugir”, desistir da atividade; ao serem presos sequer podem “delatar”….., o medo de perder a vida e a dos familiares é o maior problema que enfrentam, assim acabam por assumir a culpa de tudo sozinhos e a cúpula da organização criminosa sai impune!
Fonte: Carta Capital
Autoria: Elane F. De Souza OAB-CE 27.340-B
Foto/créditos: sertãoafora. Blogspot; alunodaestrada. Com
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